quarta-feira, 7 de maio de 2014

Lisca Precipitado

Pouco mais de cinco meses após sua contratação oficial, Lisca deixa, por vontade própria, o comando do Náutico. O pedido de demissão foi inicialmente negado pelo presidente executivo, Glauber Vasconcelos, mas o treinador não revogou sua decisão e de fato está fora do clube.

O técnico, bastante conhecido no futebol gaúcho, chegou ao clube num momento de necessidade: necessidade de resiliência, de auto-estima, de vitórias. Mas com o moral em baixa, o caixa apertado, a unidade política mais quebrada do que nunca e o nome e a credibilidade do clube sem respaldo, foi difícil encontrar momentos de tranquilidade num trabalho incipiente.

Com apenas três jogadores no plantel no momento em que assinou com o clube, o maior desafio de Lisca foi remontar um elenco do zero. Com todos os obstáculos já citados em meio ao processo. O tripé dos negócios (dinheiro, oportunidade e respaldo) sustentado por uma só coluna foi suficiente para trazer, aos bolos, uma leva de atletas, em sua maioria desconhecidos, para jogar a Copa do Nordeste em um tempo de 18 dias. Com um mercado escasso e, nas condições do Náutico, débil.

Dados os primeiros passos de uma longa caminhada, veio a Copa do Nordeste em um grupo dificílimo, com o rival Sport, opulente, munido de muito mais recursos e recém egresso a Série A; o Botafogo/PB, que alguns meses antes havia conquistado a Série D; e o Guarany/CE, junto ao Náutico uma incógnita. 

Sem delongas, não havia, nem no pequeno grupo de alvirrubros mais otimistas, alguém que acreditasse numa arrancada espetacular no início do trabalho. A esperança criada e o otimismo renovado após uma vitória, após quase dez anos completos, sobre o Sport na Ilha do Retiro na 2ª rodada da competição acabou por frustrar, mais do que se podia prever, toda uma torcida que meses antes não galgava mais nada, com a posterior eliminação. O fato de que, passadas três rodadas e, tendo o Náutico um jogo a menos que Guarany e Sport, estando entre os dois que seguiriam adiante criou a certeza de uma classificação que não veio de maneira quase trágica.


E aí veio a primeira das muitas dificuldades que Lisca passaria no Recife: o jogo adiado com o Botafogo, que colocou o Náutico em uma sequência desumana de jogos e sobrecarregou fisicamente um time que mal teve pré-temporada. 

Ainda nesta competição, sua comemoração incomum e, principalmente, atrevida no alambrado na Ilha do Retiro após a quebra de um longo tabu criou um rótulo folclórico em cima do mesmo que sempre escondeu seus méritos: o de doido. Esse "título" já veio em sua mala de Caxias de Sul, mas sua "rivalidade" com o atacante Neto Baiano, do Sport, e demais atitudes ao longo de sua passagem, curta, mas intensa, só fizeram aumentar mais essa associação. Tudo isso representava um paradoxo. Lisca não é e nunca foi doido. Ao contrário. Mostrou-se inteligente, excelente orador, quase prosaico, e, principalmente, intrépido, o que incomodava pelas respostas em alto nível dadas a imprensa, acostumadas as toupeiras prolixas que comumente aqui trabalham. Tinha pouca tolerância a factoides quase diários, sempre rapidamente desmentidos pelo mesmo. Um Lisca incomoda muita gente. 

Foto: Guga Matos/JC Imagem


Eliminado da Copa do Nordeste, as atenções voltaram-se para o Campeonato Pernambucano. Embora irregular, Lisca transformou seu grupo, limitado, em um bando competitivo. Qualitativamente deficiente, taticamente obediente, sempre motivado. O Náutico nunca correu sérios riscos de ficar de fora do grupo dos quatro que se classificariam as finais, e provou isso com uma improvável liderança, que colocou o timbu frente ao Salgueiro na primeira batalha. O grupo era, acima de tudo, cônscio.

Valente, mesmo com a derrota em Salgueiro, o timbu conseguiu, nos pênaltis, passar a final em emocionante embate. A disputa pelo título não ocorria desde 2010. O rival era o mesmo da última final: o Sport.

Nos últimos anos, o Campeonato Pernambucano consolidou-se como parelho, com uma disputa acirrada e imprevisível pelo título. Apesar do centenário tricolor, não havia como negar o favoritismo gritante do Sport, que, com a chegada de Eduardo Baptista fez valer seu rótulo: foi absoluto nas finais e merecidamente venceu. O sentimento, embora não haja como não carregar a tristeza, era diferente do de outros anos. E a torcida estava com Lisca. O Náutico não perdeu um campeonato praticamente ganho, disputou, até o fim, um campeonato em que todos davam, desde o início, como perdido.

O início de Série B, embora apenas três rodadas tenham se passado, foi consideravelmente bom. Invicto, o Náutico venceu em casa e, com contextos diferentes, pontuou fora. O último jogo pelo campeonato teve sabor de derrota, mas a fórmula do acesso estava sendo aplicada: vencer em casa, pontuar fora.

http://nauticonet.com.br/web/wp-content/uploads/2014/02/Lisca-Foto-Aldo-Carneiro2.jpg

O ocaso de Lisca ocorreu na Copa do Brasil, após derrota vexatória para o América/RN por 3x0 na Arena das Dunas.

Em uma análise sucinta, os grandes obstáculos de Lisca, além dos expostos no início do texto, foram:

1. O adiamento do jogo com o Botafogo/PB na Copa do Nordeste, que comprometeu a parte física do time;

2. Seu rótulo de "doido", sempre maquiando seus acertos, que foi aumentado pela sua rixa com Neto Baiano e:

3. Sua relação de celeuma com a imprensa; Lisca era pouco leniente e a imprensa demasiada atrevida em sua maioria, plantando notícias escusas que sobrecarregavam um ambiente já tenso. No breve período de Náutico, segundo a imprensa, Lisca discutiu com Marcelinho, Elicarlos e Marcos Vinicius, mas o técnico só confirmou a discussão com Marcelinho;

4. Seu perfil de "dar a cara a tapa", o que sempre lhe colocava em primeiro plano mesmo ante os problemas que não lhe diziam respeito e que avolumavam, ainda mais, uma vasta carga; 
5. O peso de dirigir um clube carente de títulos, vitórias ou até mesmo perspectivas, tarefa escabrosa e que nem todos os profissionais do mercado estiveram/estão dispostos a aceitar;

6. Problemas de vestiário que foram, na maioria, causados por fatores externos;

7. O "fantasma das lesões" que assombraram o jogador do Náutico, deixando "hors de combat", Pedro Carmona e Luiz Alberto, peças-chave do time, e ausentes por tempo considerável Zé Mário e Marinho, dois verdadeiros motores em campo.

Lisca Náutico (Foto: Aldo Carneiro / Pernambuco Press)

Ao pedir demissão do Náutico, Lisca comete um erro. Tenho uma convicção a respeito do futebol, que é aplicável dos dois lados da mesa: não se tomam decisões de cabeça quente. Principalmente se quem tiver que tomá-la for dotado de perfil explosivo, como Lisca, inegavelmente, é.

Após a derrota para o América, onde o time todo esteve em desempenho horrível, sem nenhuma eficiência, Lisca tomou problemas de um semestre quase inteiro e tomou sua decisão. Contra a vontade dos dirigentes. De cabeça quente, sem analisar a parada vindoura em decorrência da Copa e sem analisar que, queiram ou não queiram os críticos, o Náutico vinha sendo eficiente. Ainda não eficaz, mas eficiente. E, fazendo isso, ele não prejudica só ao Náutico, mas a ele mesmo. 

Contra o Náutico:

1. Fica refém de um elenco desconhecido, indiscutivelmente limitado e montado por Lisca;

2. Tem que resolver, além do evidente problema de preparação física, a lacuna do técnico em um mercado escasso e inflacionado em um curto período de tempo;

 3. Perde o pilar de um projeto feito para o biênio inteiro.


Contra Lisca:

1. Abandona um projeto de dois anos embasado nele, em um clube de tradição que sempre foi uma valiosa vitrine;

2. Perde a chance de reerguer este clube. O trabalho, paulatinamente, vinha acontecendo, embora com muitas dificuldades. Reforços, indicados por ele inclusive, estavam/estão chegando. A parada para a Copa está na iminência de ocorrer, havendo espaço e tempo para uma intertemporada onde problemas físicos, técnicos e táticos poderiam ser corrigidos;

3. Contradiz sua classe ao abandonar um trabalho florescente, visto que hoje a queixa dos treinadores brasileiros é que, no modelo de fazer futebol do país, não se dá chance ao técnico de desenvolver o trabalho. Lisca tinha uma diretoria que o blindava e o respaldava da maneira que podia, mas aparentemente a sobrecarga emocional é maior do que o pensado.

Lisca, profissional sapiente, estudioso do futebol, de sua história e de seus componentes, marcou época no futebol pernambucano mais como um personagem folclórico do que como o treinador destemido que é. Seu grande defeito é não conhecer muito o mercado, suas indicações são muito restritas ao futebol gaúcho. Mas não se deve esquecer que nosso último acesso foi comandado por Waldemar Lemos, diferentemente peculiar e igualmente limitado, restringido-se ao mercado carioca.

 Boa sorte a Lisca, que passou de doido para precipitado. Fica o Náutico.

Lisca Náutico (Foto: Antônio Carneiro / Pernambuco Press)
Estatísticas de Lisca enquanto comandante alvirrubro:

Geral
Número de jogos: 26
Vitórias: 10
Empates: 7
Derrotas: 9 
Aproveitamento: 47,43%
Gols marcados: 31 (média de 1,1 por jogo)
Gols sofridos: 32 (média de 1,2 por jogo)
Saldo: -1

Copa do Nordeste
Número de jogos: 6
Vitórias: 1
Empates: 3
Derrotas: 2
Aproveitamento: 33,33%
Gols marcados: 4 (média de 0,66 por jogo)
Gols sofridos: 7 (média de 1,1 por jogo)
Saldo: -3

Campeonato Pernambucano
Número de jogos: 14
Vitórias: 7
Empates: 2
Derrotas: 5
Aproveitamento: 54,76%
Gols marcados: 20 (média de 1,4 por jogo)
Gols sofridos: 17 (média de 0,8 por jogo)
Saldo: 3

Copa do Brasil
Número de jogos: 3
Vitórias: 1
Empates: 0
Derrotas: 2
Aproveitamento: 33,33%
Gols marcados: 1 (média de 0,33 por jogo)
Gols sofridos: 4 (média de 1,33 por jogo)
Saldo: -3

Série B
Número de jogos: 3 
Vitórias: 1
Empates: 2
Derrotas: 0
Aproveitamento: 55,55%
Gols marcados: 6 (média de 2 por jogo)
Gols sofridos: 4 (média de 1,33 por jogo)
Saldo: 2 

Mandante
Número de jogos: 12
Vitórias: 6
Empates: 1
Derrotas: 5    
Aproveitamento: 52,7%
Gols marcados: 15 (média de 1,2 gols por jogo)
Gols sofridos: 15 (média de 1,2 gols por jogo)
Saldo: 0

Visitante
Número de jogos: 14
Vitórias: 4
Empates: 6
Derrotas: 4
Aproveitamento: 42,8%
Gols marcados: 15  (média de 1,07 gols por jogo)
Gols sofridos: 14 (média de 1 gol por jogo)

  


Próximo post: O Náutico segue (em 09/05)



Por Rodolpho Moreira Neto


             Link permanente da imagem incorporada


Um comentário: